A cidade é sonora em suas formas, seus descaminhos, suas tensões.
O atrito das folhas caídas contra o asfalto sujo, saltos e bengalas atravessando as ruas, cores rígidas luminosas orquestrando o tráfego fantasma da madrugada cochilante, os passos de dança dos pombos no cerco às migalhas da praça velha.
Dançam os pombos, e as notas se perdem na música urbana.
A multidão é o coral que canta o caos, é o balé que sapateia na dinâmica veloz do musical metropolita, furioso e sóbrio, cego e tenso. Concreto, metal, plástico. Isopreno, isopor, elástico.
Pés e pneus mergulham nas poças e navegam nas vias. Buzinas e assobios agudizam às pressas a pressa. Zíperes deslizam, moedas tilintam.
Loucos poetas em trapos, a voz em farrapos, o passo sem chão e os olhos sem cor, qual maestros vestidos de orgulho e gravata, regem com bronca a miséria dos dias e dormem na glória das sarjetas sem luz.
A presença morena do samba vai com as pernas que descem as ladeiras, e rebeldes braços tingidos de claves se esfregam nas travessas.
Um acordeão espreme Ravel, os violinos na próxima esquina choram Gardel.
II
A dor não é menos doída porque compreendida.
(Às vezes, parece que é o contrário.)
Cobertos de lã rala e suja, à sombra do sol e da vida, feridos sobreviventes dormem de tristes e, cicatrizantes, sonham em mi.
Velhos, de incontáveis anos, de história ignorada, memória perdida e identidade sem registro, divagam em fá.
Crianças, de dentro de caixas, magrelas e verdes, se gritam pra lá.
Moços nem sérios nem calmos se compram e vendem debaixo de sol.
Incólumes, isentos e incautos, parados nos autos de óculos escuros e ouvidos tapados, se olham, se riem, se calam, não choram, só pensam em si.
Os moleques são mesmo danados, e mexem, e quebram, e podem sorrir.
As meninas cantam juntinhas, descalças e alegres, vestidas iguais.
Uma flauta acompanha tambores que batem molhados de lágrima. O som doce e seco é negro e é negro.
O flautista, em pé, convidado, assopra calado e despreocupado, no bolso um dever e na bolsa uma blusa, um abraço escondido nos olhos de vidro e um novo poema pra compor no bar.
O percussionista, sentado e arisco, firme e consciente, mantém todo o ritmo com a força das mãos. Revolta nos olhos, no peito - um devir. Entre seus pés de chinelo, uma cesta encardida, rasa e precária (não menos que a vida), recebe os vinténs que o músico agradece sem voz e sem gozo.
Na cesta, a oferta ímpar-par dos tímidos pobres que apalpam os bojos das pernas da calça e já não têm muito dinheiro que falte, que se conte, se negue, se deixe de dar. E notas cuspidas com pressa que bolsas de couro podem prescindir. Notas de dois, notas de dez, notas reais, notas de dó.
Uma transeunte penteada de óculos de sol e casaco estranho ao clima, de calça apertada e sapato apertado e pulseiras folgadas e bolsa grandona e folgada e relógio grandão para pra ver. De começo, vê com estranheza, quer muito risadas, se atém ao batuque. Não se reconhece no ritmo, e aquele cabelo e aqueles colares e aquela sandália do percussionista, aquilo tudo lhe é distantíssimo. Fazendo caretas traquinas, investiga curiosa e animada um qualquer do lado: são do Brasil? Pensara que o percussionista viera da África, algo assim. Veio talvez o tetravô, de navio, alguém diria. A transeunte joga uma nota na cesta, acha graça, dá no pé.
Abaixando a cabeça pra caçar distração nas pedrinhas de concreto que sobraram da reforma da calçada e concentrar na batida, o percussionista não se livra da vontade de saber realmente se quem o assiste é do mesmo país que o dele. Falta praquela passante e pra muitos (talvez) entender o que é duro praquele músico aceitar: são todos do mesmo país, embora vivam em mundos distintos.
O som destoa da fraca garoa que volta a cair. Também não se arranja muito bem com a coisa de ser feito para a oferta de quem anda já sem olhar ao redor, surdo à voz da cidade por fones de ouvido e calado aos contrastes pelo chicle livre de açúcar. (mas pára pra ouvir e, antes de sentir, lança na cesta das desigualdades a fração filantrópica de ignorar.)