Ela demorou bastante tempo até me receber. Fiquei na sala esperando, lendo uma revista. Era a Veja, e por incrível que pareça, dei considerável atenção às matérias daquela edição, uma delas inclusive falando sobre Fernando Gabeira. Vale dizer que, embora adotem modelo nada louvável de jornalismo e carreguem um invejável histórico pouco positivo, de vez em quando eles acertam. Eu acabara a leitura sobre o caso da morte do Coronel Ubiratan dos 111 - vale dizer da minha surpresa ao descobrir que a maior parte dos crimes passionais é executada por homens - e partia para a seção de saúde que trazia informações sobre alimentação quando ela apareceu. Disse que estava preparando tudo. Antes que eu a visse, sumiu novamente e, instantes após, pediu para que eu entrasse.
Sentei naquela cadeira que tanto gosto, e ela caminhava de um lado a outro, observando ao redor, querendo ter a certeza de que não estava faltando nada. Deixara o telefone insistente aos cuidados da caixa postal e iniciou alguma conversa para quebrar o gelo. Pediu desculpas pela demora, perguntou das férias, da vida. Ela me olhava sério e bem nos olhos - coisa que me incomoda bastante -, como não fosse capaz de sorrir, mas logo contrariava a própria aparência e sorria. Sentou ao meu lado e disse, tranqüila: "Vamos lá?". Vamos, Vamos. Já houvera me dado um líquido num copinho descartável e um guardanapo que mantive na mão esquerda até ir embora. Suas mãos tão lisas, ela tocou meus lábios e pediu para que eu abrisse minha boca. Seu olhar clínico, atencioso e profundo, ela disse depois que eu estava me cuidando bem, mas que não poderia relaxar. Ela algumas vezes levantava, procurando por algo, achava e voltava rápido. Quando ao meu lado, mantinha-se muito concentrada. Era intimamente prazeroso olhar nos seus olhos quando ela olhava a minha boca. Praticamente não tirava os olhos dela. Passou vaselina ao redor, disse que era para não machucar. Papel, plástico, metal, substâncias químicas. Líquidos, pastas. Água, muita água. Por vezes eu fiquei todo molhado, e ela delicadamente me secava. Tendo todo o cuidado de ser pouco cruel, ela se utilizava de muitos artifícios para me manter ali, submetido àquela espécie de tortura. Em alguns momentos, eu ficava todo arrepiado, mas continha qualquer impulso, e permanecia em silêncio. Ela sempre pedia para que eu segurasse, ora com firmeza, ora apenas suportando tudo aquilo o que ela tinha e usava em mim. A boca, às vezes eu precisava abrir bem. Em outros momentos, ela pedia que eu fechasse, pouco a pouco, e desta forma controlava todas as medidas e posições. Não demorou muito para que eu sentisse dor. E quanto sangue eu tive de cuspir. Água, muita água. Água e sangue, e ela delicadamente me limpava e secava.
Já havia se passado bastante tempo e muita água quando ela finalizou aquele trabalho tão minucioso, paciente, preciso. Explicou o porquê de ter sangrado tanto. Eu pude compreender, mas de todo modo é doloroso e incômodo. Ela recomendou que eu continuasse a me cuidar, e que não tivesse medo do fio dental. "Sabendo usar, não machuca e é fundamental". Paguei com cheque, ela me deu um recibo. Desejou-me boas festas de final de ano e sorte no vestibular. "Até a próxima", disse sorrindo. Simpática, acompanhou-me até a porta. Deu-me uma escova de presente. Considero-a muito boa profissional. É verdade que passar por isso é doloroso, mas reconheço a necessidade e, afinal, faço isto apenas uma vez por ano.