Mediante estas belas mentiras...

digo sempre o que tenho de verdade.

10.1.06

Novos Olhares: O Incômodo

A moça grita. Anuncia, comunica, intima, convida, conclama a massa em filas para a sua lotação vazia e que sai em breve, com certeza antes que os ônibus aguardados pelas filas da massa.

Pessoas ásperas acompanham com os olhos a aproximação da senhora que pede esmola porque é doente, porque precisa de remédio, porque precisa viver e viver sem dinheiro não dá.

O senhor que vende 'as gostosas balinhas de goma' também vem.
E vai, e volta. Tenta vencer pelo charme e pelo cansaço.

O menino dos chocolates aguarda os coletivos paralelo às filas. O seu itinerário comercial é onboard. Ele faz baldeações pelo caminho. Pessoas ficarão até contentes com sua presença anunciada, repleta de "por favor, pessoal", "obrigado, boa viagem a todos " e "deus abençoe". É a maneira mais digna que o menino encontrou para manter o sustento de sua família. Ele vai descer daqui dois pontos seguintes, pelos quais passará o primeiro ônibus que chegou e levou parte da massa que a moça que grita não conseguiu atrair.

As filas da massa crescem. A massa é dispersa. A massa tem rosto, sim. A massa olha ao redor. Ouve os ruídos urbanos. Sente o cheiro de podridão que compõe a crosta de imundície da sarjeta.

Mendigos dormem nos bancos da praça. Crianças selecionam nos sacos de lixo.
Policiais batem papo sobre o futebol de outro dia, ou comentam de pequenas ocorrências.
As moças do fast-food esquecem dos pedidos e do troco.
Um homem perdido vindo do interior pede informação.
Uma mãe estapeia a filha que subia num corrimão.
A garota joga o papel de bala no chão.

As pessoas só se incomodam com o barulho que vou fazendo ao comer pipoca.

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Selecionando conceitos de olhares:
"Ruas podem ser lidas como livros, ao menos pelos pedestres."
(Peter Burke)

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa! Que post legal! Parece que eu o li em 5 segundos.

Outro dia eu estava andando de ônibus... Antigamente eu lia compulsivamente dentro de qualquer transporte coletivo. Ou ouvia música e fechava os olhos, me permitindo cochilar por alguns minutos. Agora eu prefiro me deixar levar pela paisagem urbana, pelas pessoas, pelos olhares e pelos sons ao meu redor.