29.1.06
Ficção de Amor Do Acaso e Orkutismo
Ele já não queria maiores explicações.
Quando acessou a página principal do Orkut e começou a olhar seu profile, leu de imediato o lembrete "Sorte de hoje", que de quando em quando surge para aconselhar os usuários do profícuo site. E lá dizia: "Pare de procurar eternamente; a felicidade está bem ao seu lado".
Até parecia clichê. Um clichê velho, incômodo, besta. Mas coisas semelhantes começavam a pular na tela: os nicks do MSN, todos com suas frases provérbicas, manifestando aquele mesmo sentimento de que "a felicidade está do nosso lado e nós, sempre querendo mais e mais, vemos tão distante mas não conseguimos dar atenção e importância àquilo que está tão presente e tão próximo de nós mesmos".
Ele já estava puto. Ia desligar tudo. Fechar as janelas todas não resolveria. Somente ao apertar todos os botões, ver tudo em off, ele teria sossego.
Não adiantou. A máquina fez silêncio total - ela toda desligada. E ele decidiu dar uma volta, ir até a banca de jornais. Havia cancelado a assinatura do jornal, pois alguns imprevistos previsíveis na fatura do cartão obrigaram-no a cortar despesas.
Chegando à banca, aquela mesma mocinha de sempre que o atendia e anunciava os preços de tudo, com o mesmo sorriso e a mesma educação, deu-lhe um "bom dia" animado. No rádio, a música de Nando Reis dizia tudo o que ele não queria mais ouvir: "Seu amor pode estar do seu lado...". Tudo conspirava a seu favor. Era demais, ser tudo coincidência, ou uma grande bobagem.
Na hora, ele não teve dúvida alguma. Pegou a moça de jeito, quando ela voltava com o jornal nas mãos e as moedas do troco. A mocinha, atônita, de olhos arregalados, ameaçou até cobrar explicações, perguntar o que estava acontecendo ali, quando ele lhe deu um longo beijo.
Ruborizada e um pouco trêmula, depois de tudo aquilo, reagiu imadiatamente entregando-lhe o jornal, e até tentou falar qualquer coisa, quando ele antecipou-se e disse, todo sem-graça e com pressa: "Pode ficar com o troco". Olhou dos lados, tentando arrumar a camisa quase nada amarrotada, e, sem saber para onde ir, foi embora, desengonçadamente. Talvez fosse até a floricultura.
10.1.06
Novos Olhares: O Incômodo
A moça grita. Anuncia, comunica, intima, convida, conclama a massa em filas para a sua lotação vazia e que sai em breve, com certeza antes que os ônibus aguardados pelas filas da massa.
Pessoas ásperas acompanham com os olhos a aproximação da senhora que pede esmola porque é doente, porque precisa de remédio, porque precisa viver e viver sem dinheiro não dá.
O senhor que vende 'as gostosas balinhas de goma' também vem.
E vai, e volta. Tenta vencer pelo charme e pelo cansaço.
O menino dos chocolates aguarda os coletivos paralelo às filas. O seu itinerário comercial é onboard. Ele faz baldeações pelo caminho. Pessoas ficarão até contentes com sua presença anunciada, repleta de "por favor, pessoal", "obrigado, boa viagem a todos " e "deus abençoe". É a maneira mais digna que o menino encontrou para manter o sustento de sua família. Ele vai descer daqui dois pontos seguintes, pelos quais passará o primeiro ônibus que chegou e levou parte da massa que a moça que grita não conseguiu atrair.
As filas da massa crescem. A massa é dispersa. A massa tem rosto, sim. A massa olha ao redor. Ouve os ruídos urbanos. Sente o cheiro de podridão que compõe a crosta de imundície da sarjeta.
Mendigos dormem nos bancos da praça. Crianças selecionam nos sacos de lixo.
Policiais batem papo sobre o futebol de outro dia, ou comentam de pequenas ocorrências.
As moças do fast-food esquecem dos pedidos e do troco.
Um homem perdido vindo do interior pede informação.
Uma mãe estapeia a filha que subia num corrimão.
A garota joga o papel de bala no chão.
As pessoas só se incomodam com o barulho que vou fazendo ao comer pipoca.
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Selecionando conceitos de olhares:
"Ruas podem ser lidas como livros, ao menos pelos pedestres."
(Peter Burke)
Pessoas ásperas acompanham com os olhos a aproximação da senhora que pede esmola porque é doente, porque precisa de remédio, porque precisa viver e viver sem dinheiro não dá.
O senhor que vende 'as gostosas balinhas de goma' também vem.
E vai, e volta. Tenta vencer pelo charme e pelo cansaço.
O menino dos chocolates aguarda os coletivos paralelo às filas. O seu itinerário comercial é onboard. Ele faz baldeações pelo caminho. Pessoas ficarão até contentes com sua presença anunciada, repleta de "por favor, pessoal", "obrigado, boa viagem a todos " e "deus abençoe". É a maneira mais digna que o menino encontrou para manter o sustento de sua família. Ele vai descer daqui dois pontos seguintes, pelos quais passará o primeiro ônibus que chegou e levou parte da massa que a moça que grita não conseguiu atrair.
As filas da massa crescem. A massa é dispersa. A massa tem rosto, sim. A massa olha ao redor. Ouve os ruídos urbanos. Sente o cheiro de podridão que compõe a crosta de imundície da sarjeta.
Mendigos dormem nos bancos da praça. Crianças selecionam nos sacos de lixo.
Policiais batem papo sobre o futebol de outro dia, ou comentam de pequenas ocorrências.
As moças do fast-food esquecem dos pedidos e do troco.
Um homem perdido vindo do interior pede informação.
Uma mãe estapeia a filha que subia num corrimão.
A garota joga o papel de bala no chão.
As pessoas só se incomodam com o barulho que vou fazendo ao comer pipoca.
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"Ruas podem ser lidas como livros, ao menos pelos pedestres."
(Peter Burke)
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